“Há crianças que aos 5 anos não sabem correr, saltar ou atar os sapatos.” Embaixador de Leiria, Cidade Europeia do Desporto, Carlos Neto é, provavelmente, o maior perito nacional nos temas que versam a importância da atividade física e da brincadeira no desenvolvimento das crianças.
A convite do Sport Clube Leiria e Marrazes, o professor e especialista em Motricidade Humana regressou este sábado à cidade que o viu nascer para falar deste tema tão premente.
Recordou, naturalmente, os tempos de jovem, quando jogava com o símbolo do corvo ao peito, e fez um ponto de comparação entre o que viveu nesta “escola extraordinária de valores”, nos anos 60 do século passado, e aquilo com que os mais novos atualmente se deparam.
“Ensinaram-nos que o desporto não é só conquistar taças e medalhas. Serve sobretudo para se aprender a viver e a ganhar valores para a vida, como a amizade. Vivíamos como uma família”, garante Carlos Neto.
As crianças estão aprisionadas em casa, no automóvel e na escola
Leiria era, então, uma “cidade mágica”. “Ainda hoje venho visitar os cheiros, os espaços e os lugares da minha infância. Tínhamos uma cultura absolutamente fantástica de brincar na rua. A nossa escola de formação foi, antes de tudo, a rua. Duas pedras serviam de baliza e jogávamos.”
Brincar na rua era “importante para a formação”. “Esse é um dos grandes problemas dos jovens. Hoje em dia passeia-se mais os cães do que as crianças. Significa que as crianças não têm possibilidade de sair de casa. São transportadas de carro para a escola e vivem lá a maior parte do tempo, porque os pais estão a trabalhar.”
Em 40 anos, “tudo mudou”, considera o professor jubilado na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. “Houve uma decadência enorme do ponto de vista de mobilidade, de atividade física, de socialização, de descortinar o imprevisto, de subir às árvores, de correr no meio do milho, de assaltar o castelo. Eram aventuras absolutamente fascinantes que vivíamos na nossa infância.”
A maior pandemia do século não é a Covid-19, mas o número de horas que estamos sentados
O professor catedrático jubilado da Faculdade de Motricidade Humana, de 71 anos, sublinha que, atualmente, nas famílias, impera o medo e uma “superproteção patológica”. “As crianças estão aprisionadas em casa, no automóvel e na escola.”
O trabalho de investigação académica que tem vindo a desenvolver há quase cinco décadas centra-se sobretudo no papel do brincar e do jogo no desenvolvimento das crianças, porque teve “uma infância muito rica”.
O que hoje não acontece, com todas consequências que daí advêm. “As grandes aquisições motoras começam logo na barriga da mãe e depois nos primeiros passos, nas primeiras corridas e nas primeiras aventuras. É aí que tudo se elabora e uma criança que não tem uma aquisição motora suficientemente adequada até aos seis anos de idade dificilmente terá sucesso mais tarde, em qualquer modalidade desportiva.”
O desporto é das atividades que melhor prepara os cidadãos para serem ativos, participativos, críticos e, acima de tudo, terem sucesso
Diz, por isso, que neste mundo em mudança deve surgir um novo paradigma. “Temos de criar uma nova estrutura de trabalho, em rede, um pacto entre a família, a escola e a comunidade, para ultrapassar esta crise sistémica. O desporto é uma das atividades que melhor prepara os cidadãos para serem ativos, participativos, críticos e, acima de tudo, terem sucesso. Há estudos científicos que nos dizem que quem teve uma infância feliz tem mais probabilidade de ter sucesso mais tarde.”
O professor garante que é preciso reconstruir a cidade para todos, devolver a rua aos mais pequenos e deixar que estes testem riscos e limites. “Temos de criar uma população culta do ponto de vista corporal, motor e de relação com outros.”
“As crianças não têm espaço nem tempo para brincar. Vivem completamente aprisionadas. Não se veem crianças a jogar e estão agarradas aos telemóveis.” Por isso, diz Carlos Neto, “a maior pandemia do século não é a Covid-19, mas o número de horas que estamos sentados” por causa da nova cultura digital, o que traz “graves consequências” para a nossa coluna.
Há crianças que aos 5 anos não sabem correr, saltar ou atar os sapatos. Uma incultura motora como nunca se viu no país
“Esse tempo que as crianças estão em frente ao ecrã está a ser retirado a outras experiências mais imprevistas, com mais risco e mais sentido lúdico”, o que traz “graves problemas” ao nível “do sono, da alimentação e da sociabilização”.
Naturalmente, também provoca sedentarismo, uma tabela que Portugal, infelizmente, lidera em toda a União Europeia, bem como as tabelas de obesidade entre os 27 países.
É necessário mudar, diz Carlos Neto, até porque os mais novos “estão a ficar cada vez com mais excesso de peso e inabilidade motora”. “Há crianças que aos 5 anos não sabem correr, saltar ou atar os sapatos. Uma incultura motora como nunca se viu no país.”
Não temos mais perigos do que há 30 ou 40 anos. O que temos é mais automóveis que roubaram os espaços nas ruas onde se jogava
As escolas estão “formatadas” e “só se pensa em obter notas, testes atrás de testes para se entrar na universidade e são desvalorizadas atividades como o desporto, a atividade física e as artes”, diz o fundador da Sociedade de Educação Física . São áreas “completamente desvalorizadas” no currículo e por isso temos “um problema grave de saúde pública e ninguém quer discutir este assunto”.
É, também, uma “pandemia política, por não valorizar o que é essencial para a criança”. “Costumo dizer que corpos ativos dão cérebros ativos através de emoções e sentimentos e quem não percebe de emoções não percebe nada disto. O movimento do corpo é o arquiteto do cérebro. O corpo tem de sentir para aprender, não pode ficar sentado e calado.”
Em Portugal há, segundo o docente e autor de vários livros nesta área, “duas variáveis” que condicionam muito as crianças a fazerem atividade física e desporto. “Em primeiro lugar, o facto de termos uma urbanização caótica. Fizeram-se cidade, vilas e aldeias sem qualquer ordenamento do território. Por outro lado, aumentou o nível de automóveis. Na verdade, não temos mais perigos do que há 30 ou 40 anos. O que temos é mais automóveis que roubaram os espaços nas ruas onde se jogava.”