O saco de boxe balança de um lado para o outro. De luvas postas, Helena desfere mais um pontapé. Ao lado, a mãe, Leonor, não se deixa ficar — atira dois murros certeiros e sorri, ofegante. Um pouco mais adiante, Laura, a filha e neta, com uma postura já refinada e segura, executa combinações rápidas, dignas de uma campeã mundial. No pavilhão da Associação Desportiva Piranha World Fighters, em Moinhos de Carvide, treina uma família que ninguém esperaria encontrar assim, lado a lado: avó, mãe e neta, todas praticantes de kempo.
Não é uma metáfora: é mesmo verdade. Três gerações, três mulheres com rotinas, corpos e idades muito diferentes, unidas por uma paixão comum. E tudo começou quase por acaso — ou por persistência.
Comecemos pela avó. Leonor Henriques tem 71 anos e é contabilista aposentada. Durante muito tempo, acompanhava a neta aos treinos, mas só do banco. Tudo mudou depois de enviuvar. “Foi muito difícil. Pensei que se me agarrasse ao sofá, acabariaa por ficar paralítica”, diz. Um dia, foi pedalar para o ginásio do clube. No outro, já estava integrada na turma dos veteranos.
Hoje, treina com colegas que podiam ser seus filhos — e fá-lo com boa disposição e garra. “Não estou ali para competir, mas para não enferrujar. Não posso pensar em fazer o que a minha neta faz, mas procuro acompanhar os outros. Gosto muito e, quando não consigo, faço um bocadinho de batota.”
O treinador, Marco Carvalho, não tem dúvidas: “Ela é uma inspiração para todos. Em todos os exercícios, ao ritmo dela, nunca recusa um desafio.”
Foi contudo a mãe, Helena Silva, de 44 anos, quem empurrou Laura para as artes marciais, há mais de uma década. “Sempre gostei e incentivei a minha filha a praticar, pela defesa pessoal, pela disciplina e pelo misticismo que existe em torno da modalidade.” Mas não ficou por aí. Contabilista de profissão, Helena encontrou no kempo o escape de que precisava. “É uma profissão muito desgastante. Precisava de algo para libertar, e nada melhor. É espetacular. Aconselho a toda a gente. Imaginar que o saco é aquela pessoa que nos fez mal e enchê-lo de murros e pontapés? É terapêutico!”
Hoje, treina, ajuda na logística do clube, acompanha a filha em todas as competições e colabora em tudo o que pode. “Saber o que a Laura está a fazer, apoiá-la sempre, passar mais tempo com ela — isso para mim vale tudo.”
Laura Silva tem apenas 16 anos, mas já carrega uma carreira sólida e títulos internacionais. Em 2023, juntou-se aos Piranha World Fighters e encontrou nova motivação. “É uma segunda família”, resume. “A minha família desde o início me apoiou. Agora, também sou eu que as apoio. Dou-lhes dicas, convivemos. Como sou muito perfeccionista, se estão a fazer alguma coisa mal, eu exemplifico e digo como se deve fazer.”
Na mais recente Taça Internacional, no final do mês passado, nas Caldas da Rainha, trouxe para casa um título de campeã e cinco outros prémios. Está a rechear o currículo, mas a conquista que mais valoriza talvez seja outra: ver a mãe e a avó a crescerem ao seu lado.
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Ora, o que torna esta história especial não é só o talento de Laura ou a coragem de Leonor. É a improbabilidade da equação. Três mulheres, de gerações distintas, que partilham a mesma modalidade, o mesmo espaço, o mesmo compromisso. “É uma história rara. Nunca vi nada assim”, diz Marco, o treinador.
E pronto: em Moinhos de Carvide, o kempo é muito mais do que uma arte marcial. É um ritual de ligação entre mulheres que, entre murros, quedas e abraços, descobrem que lutar juntas é uma forma de cuidar.